ESCRITOS

Santinho, meu pai Canela, usa o peixinho com que me presenteou. Foto: Toninho Muricy (agosto 2012).


Entre os Canela/Rankokamekrá I 

Se eu pudesse compreender a indigente suntuosidade daqueles homens vermelhos brotados da terra vermelha, nascidos do esporro candente do sol vermelho, peles lisas alisáveis terracota, olhos chegados de um planeta a que nunca irei, aqueles pedintes majestosos, arquimilionários seminus, poderosos  guerreiros de lanças quebráveis, pedindo como quem dá, destituídos como os que mais nada querem, ou os que querem por esporte, apagando a última centelha de luz do planeta onde insistem meus glóbulos oculares, este planeta a que eles nunca irão, escancarando à cega os portais de seu império de palha, palha incandescente à luz do sol poente, palha-mãe, chão, mortalha, reino evanescente, evasivo, cidadela do intangível, divisória do sopro, rede de esperar mistérios. Se eu pudesse ao menos vislumbrar – admitir – esse quinhão do nada, esse desejo sem objeto,  céus, que psicanálise poderia se arriscar sobre esses homens insujeitáveis?...



Entre os Apinayé, I (este branco de fundo? é bug (biziu) do blogger do google).

Presentear índios parece um hábito de priscas eras, um gesto atávico. E assim me vi em Tocantinópolis, a 40 minutos da aldeia Patizal, após a primeira semana de gravações com a tarefa que requer a etiqueta de comprar presentes para alguns apinayés mais chegados: a colega de equipe e também minha madrinha, ou ikato-xá, Adriana Pykwyj (Püqüêi), meu padrinho, ou hynhypêê-xá,  Otávio Gôhgru (Gôcrü), o Diego Kath' am, que trabalhou no filme conosco como produtor, claquetista, ator, a cozinheira Ireti que tornava tudo mais confortável com seu sonoro bom dia  – amkrêgató! –, escrito como se diz.

Era sábado, dia de folga, e fiquei andando à solta na barulhenta cidade, que, conforme repetem na escola todos os tocantinopolitanos alfabetizados, teria sido fundada em 1818 por bandeirantes em busca de terras aprazíveis e futurosas, prontos a conquistar índios e devassar terrenos, ou vice-versa, que aqui nestes magníficos babaçuais vieram ter com seus presentes de grego, suas pedras atiradas na forma de capelas e santuário, suas resoluções provinciais de emancipação distrital e seus prefeitos boçais... não, isso não se aprende.

Loja de utilidades. Potinhos de tupperware para quem não guarda restos? Enfeites de flores para quem tem um bocado de cerrado? Batom, talvez, para as que dariam um grau a mais no vermelho do urucum, no pretume do jenipapo ou do pau de leite? Chaveiros para quem não tem portas?  Bonés... pode ser, mas, será que tem algum sem a marca de gado nelore, vizinho pouco amigável quando não está picotado e assado em bolo de macaxeira?  Um canivete!, consegui selecionar entre os produtos da rede de lojas de agropecuários. O vendedor veio demonstrar o produto e, com mãos estranhamente hábeis para quem suprimira as cutículas e usava esmalte incolor, abriu, uma a uma, as lâminas adormecidas no corpo-canivete, mãos frias de especialista, e eu cheguei a me afastar um pouco dele, mais temerosa de sua calculada assepsia do que de uma provável carnificina.

Notei um índio entretido na gôndola de escavadeiras, enxadas, facões. Que terras ele imaginava arar? Seu roçado, claro. De mandioca, de maconha, de abóbora. Certamente desejava ter algum gado. Mas o vasto pasto da logomarca da rede Terra Forte Produtos Agropecuários estava muito além dos limites ínfimos de seu roçado. Mesmo um único boi não cabe num roçado. O boi é o desejo possível da caça. Boi-ema, boi-paca, boi-peixe, boi-onça, boi-veado, boi-anta, boi-tatu, boi-boi da monocultura. Boi-boi para suplemento do bolsa-família ou de seja lá que ideia de alimentação passou pelas cabeças do governo para o cardápio de aldeias indígenas. A velha guerra entre roçado e latifúndio ainda espeta os discursos de modernidade do século 21 no país que arrota o crescimento do agronegócio.

Minha ikato-xá pediu-me um quilo de carne bovina como presente. Rodei algumas horas com essa ideia até que me aproximei dela e disse, vagarosamente, em nosso idioma nacional a cujo seio integrador ela pertence há gerações: a produção (oh, entidade mítica tão evocada pela equipe cara-pálida!) tratou com o chefe o fornecimento de carne para alguns rituais da aldeia. Não posso dar um quilo a você, todos querem. Eu me sentia ridícula com essa razão meio ensinamento católico, mas, não sabia o que fazer. Eu não disse, mas pensei, com nojo de mim: além do mais não quero te dar o constrangimento de ter mais que o seu vizinho... A carne cheira longe... Ela se calou e depois me disse, então, que queria calcinhas. Respirei aliviada, a catequese parecia ter funcionado.

Há um tom de réquiem do qual é difícil, mas necessário, se libertar para entrar numa aldeia indígena. Seria mais fácil nos livrarmos da prisão desta melodia nos museus etnográficos. Não se verá nestes nenhuma embalagem de batatas fritas, nenhuma garrafa de cachaça ou de refrigerantes, nenhuma camiseta com o slogan Leve Alma Suaves Sonhos, nenhum sutiã,  nenhuma havaiana, nenhum crucifixo.

No centro das vitrines repletas de armas, de acessórios rituais, de arte plumária, haverá sempre uma vitrine vazia em que montamos mundos indígenas com nossas veleidades de puristas. Suspensas por totens invisíveis essas ideias sobre índios  surpreendem o mais distraído turista por sua justa organização, pelo equilíbrio constrangedor de seus lados, por sua total descontaminação. Seriam estufas de ilusórias cosmogonias essas vagas vitrines?

Um dos nossos, K, levou frascos de detergentes especificamente para fazer bolhas de sabão com as crianças. Após testar diversas vezes as proporções de detergente e água na mistura, K conseguiu bolhas mais resistentes. Cortava os fundos de garrafas pet de 500 ml e as usava como tubos que imergia no líquido e depois soprava para o ar. Eram, portanto, grandes bolhas, com o diâmetro de cerca de um palmo de uma criança (indígena) de uns 8 anos. Numa noite, fomos surpreendidos pelos risos altos das crianças entretidas em fazer bolhas de sabão e iluminá-las com lanternas, produzindo dentro delas um belíssimo efeito de refração da luz. K já estava lá, satisfeito com a invenção dos meninos e cada um de nós da equipe sacou de sua lanterna e se juntou ao grupo, encantados com aquelas naves coloridas e tênues que explodiam ao som de risos, ohs! e saborosas interjeições indígenas até que novas bolhas eram expelidas e atravessadas pelas luzes. A posse de lanternas nos igualava a índios e brancos. A brisa resolveu entrar no jogo e empurrar as bolhas pelo pátio central da aldeia. E em pequenos grupos nos espalhamos seguindo estrelas coloridas até cada explosão final.  

Que problemática da etnografia irá encontrar essas garrafinhas plásticas de detergente daqui a 50 ou 100 anos?







[exercício de como fazer à la  
Drummond uma crônica sobre Pasárgada, de Manuel Bandeira.

Fizemos, em dia remoto,  a elegia de Baby, a elefantinha de circo que capitulou da vida terrena sob um temporal no Leblon, evadindo-se de uma existência melancólica cujos sintomas mais trágicos se deveram à estreita convivência com a espécie humana. Eventuais planos de fuga para o que resta da esgarçada Mata Atlântica nas bordas do Rio de Janeiro ou para algum reduto rural nas cercanias da capital mal nasciam e expiravam-se, desacreditados por sua aguda inteligência elefantina, certa de que, errando entre bichos homens e monstros motorizados, logo seria descoberta e restituída ao picadeiro. Fugiu sua alma para algum paraíso proboscídeo onde descansa a salvo de bípedes dotados de polegares opositores e de chicotes extensores.

Outra sorte teve um poeta, amigo de um rei da linhagem de Ciro, o Antigo, de quem herdara uma cidade no sul da Pérsia. Cozia-se em seu subconsciente desde o auge da adolescência passada entre tratamentos para o “mal que não perdoa” uma vontade de evasão. Essa vontadezinha chulé lhe habitou primeiro o subsolo mental, mas, em vinte anos de morre-não-morre, deitou raízes pelo patamar do espírito e, como um gêiser, libertou-se dos recessos subterrâneos, adotando a forma de redondilha em contato com a atmosfera: Vou-me embora pra Pasárgada! Outros cinco anos se passaram até que a vontade já madura, vertida em poema, jorrou ao correr da pena com a eloquência de um Etna.
Pois, ficasse o Eldorado na imaterialidade poética, sem raiz ou comunhão no tempo, era apenas o caso de aguardar por novas erupções líricas e trazê-las à forma sem tirar o pé do mundo. Ocorre que o poeta resolveu levar-se aos domínios ciropédicos. Vou-me embora pra Pasárgada!,  proclamou a alguém ao telefone automático num dia comum. Pois é em dias assim, sem mais, entre o comprar o leite, o fervê-lo, o torrar o pão e o inventariar as perdas entre livros e janelas, que costuma dar a eclodir o grito de evasão. E foi-se o poeta,  incensado pela crença que lhe mordera na infância e lhe sublinhava o espírito de homem maduro de que haveria uma realidade mais bela a se buscar. Quem poderia dissuadi-lo desta estranha fé se a realidade em si não o logrou?
Algum tempo depois encontrei o poeta entre amigos num café.  Rodeado de chapéus e charutos, narrava suas experiências em Pasárgada, sem muito entusiasmo. Sentei-me por perto quando já avançava entre os diversos pares de ouvidos ávidos a história de uma pendenga com o amigo rei.
- Alexandrinos?! Um deles exclamou.
- Franceses, suspirou o poeta. Todos os dias o rei queria que eu o saudasse em dodecassílabos...  Designou para meu assessor de métrica um anão chamado Hemistíquio, com fisionomia de anfíbio, que me perseguia com o martelo a pontuar tônicas e cesuras no que quer que eu falasse, fazendo-me súdito infeliz de sua tirania formal.
- Mas, e as mulheres, poeta?
- Ah, estas invocavam-me, bouleversavam-me, hipnotizavam-me às 4 horas da tarde... dei meu reino por elas, mas de que vale um reino de aventura inconsequente? Mise en abîme, eram elas apenas miragem dentro de miragem, efígies inalcançáveis em embalagem de sabonete... 
Desolado, o poeta arrematou a triste narrativa com o caso do protonotário.
- Proto quê? Perguntou-lhe o garçom que estava de passagem, meio invocado, pensando ter sido  alvo de xingamento.
- Pro-to-no-tá-rio, palavra de que gosto porque divertia-se meu pai em pronunciá-la...  rendeu-me um poema. Era o tabelião principal do maldito rei, o sujeito encarregado de expedir as grandes ordens, os grandes atos. Pois o facínora publicou toda sorte de decretos racionalizando o uso do telefone automático, criminalizando o simples porte de alcaloides, demonizando o uso de contraceptivos... as prostitutas fugiram de lá! E com isso, cadê energia para ginástica, brincadeiras de infância, histórias de Rosa?...
Fiquei especialmente solidário com a dor do poeta. Povoou  sua Pasárgada com os heróis e musas de sua pequena Tróada, a rua da União; construiu seu Eldorado com o arroubo das vontades juvenis encarceradas num corpo privado pela doença; sonhou um reino cujas paisagens estavam submersas em sua infância em Recife, uma espécie de civilização atlântida, da qual a memória soube colher apenas  boas lembranças.
Há um “lá” que move alguns homens – e quem sabe alguns elefantes. Um lugar como o que sonhou um Baudelaire, onde  tout n´est qu´ordre et beauté, luxe, calme et volupté, um oásis para a família elefantídea onde neste momento Baby certamente repousa – ou brinca, finalmente? Projeções de desejos mundanos, o que os difere são os ideais de ordem e beleza que lhes animam, forjados na precariedade da vida comum, erguidos como prêmio ao esforço humano de suportar seu período de existência. Um prêmio muitas vezes entregue de próprio punho pela “Indesejada” visita aludida pelo nosso poeta.
Como não lembrar de Joana, a nossa Medeia, convidando os filhos ainda crianças para o reino do sono eterno descrevendo-o como um lugar onde há muitas confeitarias, circo e aniversário todo dia. Um lugar onde ninguém espera ninguém, posto que “lá não dói”.
Eu, que não sou homem de paraísos, não acalanto esperanças de dar em nenhuns até por falta de merecimento pessoal. Àqueles que fazem por onde, faço votos de que o alcancem, de que o adentrem lépidos e fagueiros a exemplo de nosso amigo Ovalle que o fez ciceroneado  por coro de anjos a cantar o Azulão, ou como a Irene do nosso poeta a quem São Pedro, bonachão, dispensou cumprir o protocolo de pedir licença para entrar.
A despeito da frustração do poeta, Pasárgada viverá mil anos carregando desejos e sonhos de sossego do mais sôfrego dos executivos, da mais zen das professoras de ioga, do mais pobre dos leitores, e até dos não leitores. Recantos, condomínios, bares, restaurantes, cemitérios levarão seu nome em logomarcas arquitetadas com o insumo de referências à Ciropédia que passarão a ser buscadas crescentemente nos googles da vida.
Imerso nestas tristes ilações ainda no café, percebi a passagem de um enterro na rua. Num gesto largo e demorado, tirei meu chapéu olhando o cortejo longamente. Os amigos do poeta fizeram o mesmo, seguindo a praxe. Senti o olhar do poeta sobre mim, medindo meu gesto. Quando meus olhos se encontraram com os dele, percebi que compartilhávamos o sentimento de que, como ele um dia traria à luz num poema,  a vida é uma agitação feroz e sem finalidade. E que o único liberto ali entre nós era aquele que viajava no esquife.

A crônica faz remissões às obras:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Fala, Amendoeira;  Elegia de Baby; Cia das Letras; 2012, SP.
BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa; Itinerário de Pasárgada, referência a Vou-me embora pra Pasárgada; José Aguilar Editora, 1974, RJ.
Poema Escada, de Carlos Drummond de Andrade.
O poeta do castelo, curta de Joaquim Pedro de Andrade, 1959, RJ.
Poema Os sapos, de Manuel Bandeira.
Poema Balada das três mulheres do sabonete Araxá, de Manuel Bandeira.
Poema para Santa Rosa, de Manuel Bandeira
Poema Invitation au voyage, de Charles Baudelaire.
Poema Consoada, de Manuel Bandeira.
Gota d´água, peça de Oduvaldo Vianna Filho e Chico Buarque, adaptada de Medeia de Euripedes; texto “Morte”.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Fala, Amendoeira! À porta do céu. Cia das Letras, 2012, SP.
Poema Irene No Céu, de Manuel Bandeira.
Poema Momento num Café, de Manuel Bandeira.




Vou-me embora pra Pasárgada  [Manuel Bandeira]

Vou-me embora pra Pasárgada 
Lá sou amigo do rei 

Lá tenho a mulher que eu quero 

Na cama que escolherei 

Vou-me embora pra Pasárgada 


Vou-me embora pra Pasárgada 

Aqui eu não sou feliz 

Lá a existência é uma aventura 

De tal modo inconseqüente 

Que Joana a Louca da Espanha 

Rainha e falsa demente 

Vem a ser contraparente 

Da nora que nunca tive 


E como farei ginástica 

Andarei de bicicleta 

Montarei em burro brabo 

Subirei no pau-de-sebo 

Tomarei banhos de mar! 

E quando estiver cansado 

Deito na beira do rio 

Mando chamar a mãe-d`água 

Pra me contar as histórias 

Que no tempo de eu menino 

Rosa vinha me contar 

Vou-me embora pra Pasárgada 

Em Pasárgada tem tudo 

É outra civilização 

Tem um processo seguro 

De impedir a concepção 

Tem telefone automático 

Tem alcaloide à vontade 

Tem prostitutas bonitas 

Para a gente namorar 


E quando eu estiver mais triste 

Mas triste de não ter jeito 

Quando de noite me der 

Vontade de me matar 

-Lá sou amigo do rei- 

Terei a mulher que eu quero 

Na cama que escolherei 

Vou-me embora pra Pasárgada. 

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